Decisão judicial autoriza construção que ameaça o horizonte e a identidade da capital
Em 7 de agosto, o Judiciário paraibano tomou uma decisão que, embora amparada por fundamentação jurídica, ecoa como um sopro frio na nuca de quem conhece a história de João Pessoa. Autorizou-se a expedição do habite-se para um prédio residencial que ultrapassou o limite estabelecido pela Lei do Gabarito — ou, como o povo prefere chamar, a Lei dos Espigões — em 80 centímetros.
Para muitos, um detalhe. Para o Direito Urbanístico, um perigoso precedente. E, para a alma desta cidade, um arranhão naquilo que a torna única.
A Lei do Gabarito é mais do que um instrumento jurídico: é um pacto social que impede que a orla se transforme numa muralha de concreto, permitindo que o vento do mar, a luz do sol e o desenho natural do horizonte sejam bens comuns, não privilégios de poucos. É um marco de civilidade e visão de futuro, respeitado até aqui como um exemplo para o Brasil e o mundo de que desenvolvimento e sustentabilidade podem caminhar lado a lado.
O veneno sutil do precedente
No direito, há infrações que pesam mais pelo que representam do que pelo que medem. Ao validar uma obra que ultrapassou os limites legais, o Judiciário envia uma mensagem que não cabe apenas na sentença: “há margem para flexibilizar”.
Hoje são 80 centímetros. Amanhã, será um metro. Depois, dois. E assim, na sucessão silenciosa de exceções, desmonta-se o alicerce de uma lei que sempre foi aplicada com rigor justamente para evitar a tentação da concessão.
Precedentes têm vida própria. Quando um tribunal afasta a força plena de uma norma urbanística, abre-se um corredor para que outros empreendimentos reivindiquem tratamento similar. Não se trata de proteger um capricho técnico, mas de preservar a essência de uma política pública que moldou a identidade urbana de João Pessoa.
O que está em jogo
A qualidade de vida dos moradores é o primeiro e mais precioso bem ameaçado. Com a verticalização excessiva, perdem-se ventilação natural, luz, paisagens e, inevitavelmente, tranquilidade. O turismo, motor econômico da cidade, sofre com a perda do encanto que só uma orla aberta e harmônica oferece. E, com isso, João Pessoa arrisca-se a deixar de ser exemplo para outras capitais que buscam conciliar crescimento com sustentabilidade.
As cidades que ignoraram alertas como este — e hoje enfrentam congestionamentos crônicos, ilhas de calor e costas marítimas sufocadas por arranha-céus — são testemunhas de que não se trata de um exagero ou de um apego nostálgico ao passado, mas de um cálculo real e comprovado do que acontece quando o interesse imediato se sobrepõe ao interesse coletivo.
O início do fim?
Não é exagero perguntar se estamos diante do primeiro passo para o fim da Lei do Gabarito. Essa legislação não cairá por revogação súbita, mas por pequenas rachaduras acumuladas. Cada centímetro “perdoado” será um tijolo a menos na estrutura que sustentou, por décadas, um modelo de cidade admirado e invejado.
Talvez ainda haja tempo de reagir — por meio da sociedade civil, do Ministério Público, de urbanistas, ambientalistas e juristas que compreendem que leis como esta não são obstáculos ao progresso, mas garantia de que o progresso não se torne autodestrutivo.
Porque, no final, não são os 80 centímetros que ameaçam João Pessoa. É o precedente que, ao ser plantado hoje, pode crescer até encobrir o sol, a brisa e o horizonte que fazem desta cidade o que ela é.
Parahyba 08 de agosto de 2025
Henrique Maroja
(Foto: reprodução arquivo Secom PMJP)