Entre máscaras e mudanças: uma reflexão sobre identidade e papéis sociais

Caro leitor, na coluna de hoje manteremos a promessa reflexiva dos textos, sempre em diálogo multidisciplinar com a literatura e algumas pitadas necessárias de filosofia.

O tema estampado no título é fruto de uma série de “epifanias” de personalidade de alguém que nunca soube realmente o que quer fazer da vida e qual o seu papel. Esse desconhecimento de si próprio e de seu papel no mundo se apresenta como um “Carnaval” onde se sente vontade e capacidade de ser várias coisas, várias profissões, ou seja, é uma predisposição e uma capacidade de vestir diferentes fantasias sociais aliada à grande incapacidade de permanecer numa mesma fantasia para sempre.

Em meio às muitas perguntas que a literatura e a filosofia insistem em nos devolver como espelhos incômodos, uma delas ecoa com persistência: o que, afinal, permanece quando tudo em nós é mutável? E quem somos nós sem nossos papéis sociais? Isto é, sem nossas funções e profissões.

Essa mesma característica de personalidade, em menor proporção – focada em dualidades, já foi retratada num célebre livro do autor francês Stendhal, no seu clássico “O Vermelho e o Negro” que, penso eu, dialogar muito com a reflexão de hoje e com o paradoxo do barco de Teseu, idealizado pelo filósofo Plutarco.

Pois bem, no livro O Vermelho e o Negro, conta-se a história de Julien Sorel, um jovem com ambições fragmentadas, nascido na era pós-napoleônica, Julien era filho de um carpinteiro rude, porém o jovem era muito inteligente e dotado de um imaginário nutrido por Rousseau e Napoleão, ele vivia em constante indecisão de qual carreira seguir, entre a sedução da glória militar (o vermelho) e a disciplina clerical (o negro), confusão causada pelo desejo do personagem, mas também pela capacidade de ser ambos. Ora se veste de soldado em sua fantasia de grandeza, ora de seminarista obediente em sua escalada social. Mas qual Julien é o verdadeiro? O que sonha ou o que finge? O que ama, ou o que se deixa amar?

Julien, ao percorrer a escada social, troca de pele a cada momento, se interessando por um e por outro papel e profissão, mas, ao final, após tantas mudanças de fantasia, resta o mesmo jovem ambicioso ou um ser inteiramente outro? Essa é a pergunta que o livro nunca responde e nem poderia, isto porque nunca aprendemos quem somos para além do nosso papel social.

Ao entender a história de Julien, questiona-se invariavelmente: a identidade é continuidade ou apenas ilusão construída? Enxergo nessa ambivalência uma grande proximidade com o paradoxo do navio de Teseu que passo a explicar.

Conta-se que a embarcação do herói Teseu, muito admirado pelos gregos, autor de diversos feitos e aventuras, fora preservada pelos atenienses como uma espécie de monumento. Com o passar do tempo e em razão das intempéries naturais, cada uma de suas partes ou tábuas foi substituída. Quando todas as tábuas originais já não existiam mais, a reflexão que se impõe é – ainda se podia dizer que aquele era o navio de Teseu? Mesmo após a substituição de todas as suas peças e partes? Se sim, por que não considerar também o amontoado de tábuas descartadas como o verdadeiro? A filosofia reconhece aqui o dilema da identidade na mudança: somos os mesmos apesar da transformação? E, mais importante, se somos os mesmos, o que nos torna os mesmos apesar da transformação?

Talvez resida aí a atualidade dessa aproximação. No mundo contemporâneo, em que nossas identidades são editadas em perfis digitais, a cada publicação substituímos uma “tábua” daquilo que somos. Como Julien, podemos nos mover entre diferentes papéis — profissionais, familiares, virtuais — até que já não saibamos qual deles é o “original”. Mas não é exatamente esse o ponto?

A busca por uma essência, por um papel social imutável talvez seja um equívoco: tanto em Stendhal quanto no mito de Teseu, a identidade se mostra como o fluxo, como processo de substituição e recomposição contínua.

O que sobra, então? Talvez apenas a nossa própria narrativa de todos os perfis que compõem quem realmente somos, nossas tendências a vários papéis e várias profissões. O navio continua sendo chamado de Teseu porque contamos a história de que ele é o mesmo. Julien continua sendo Julien porque o romance insiste em nos dar esse fio condutor, mesmo que externamente ele se desfaça em várias profissões e papéis.

Se assim for, o dilema não é descobrir finalmente que profissão devemos escolher para toda nossa vida ou nos resumirmos a uma carreira, mas quais narrativas decidimos manter sobre nós mesmos. Entre as várias fantasias que podemos vestir, entre a tábua substituída e a que se perde, a vida se revela menos como uma essência e mais como uma miríade, uma colcha de retalhos. O navio de Teseu e Julien nos lembram: não importa quantas fantasias troquemos, somos sempre resultado das histórias que contamos e acreditamos.

A meu ver, a conclusão é irônica: a humanidade busca permanência e perenidade onde só existe transformação e pessoas sendo o que são – seres multifacetados e propensos a viver.

24 de agosto de 2025

Pedro H. Guerra

(Imagem de capa: Freepik Rawpixel.com)

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