O ex-governador e ex-senador ad Paraíba, Cássio Cunha Lima, que recentemente trocou o PSDB pelo PSD, reapareceu na imprensa nacional revelando ser defensor do parlamentarismo, um sistema de governo onde o poder executivo depende diretamente do legislativo, ou seja, do parlamento. Nesse sistema, o chefe de Estado (como um presidente ou monarca) e o chefe de governo (geralmente um primeiro-ministro) são figuras distintas. O chefe de governo é escolhido pelo parlamento e pode ser destituído por ele, caso perca a confiança dos parlamentares.

A entrevista foi concedida por Cássio ao Correio Braziliense e publicada no dia 22 de abril.

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O Estado impede o país de crescer”, diz Cássio Cunha Lima

Para o ex-senador e ex-governador da Paraíba, o grande desafio do Brasil é fazer com que os preceitos da Constituição sejam aplicados no dia a dia da sociedade. Defensor do parlamentarismo, considera que o atual modelo de governança é insustentável

Aos 23 anos, Cássio Cunha Lima foi eleito deputado federal pela Paraíba e tornou-se um dos mais jovens parlamentares da Assembleia Nacional Constituinte, em 1987. Passados quase quatro décadas da eleição daquele Congresso voltado para elaborar a nova Carta, em substituição à de 1967, ele considera que ainda existem vários entraves que impedem o país de cumprir as promessas da redemocratização. Para Cássio, ex-governador da Paraíba e senador entre 2011 e 2019, o Estado virou um obstáculo ao desenvolvimento e essa ausência de resultados sociais concretos abre brechas para extremismos e retrocessos. Nesta conversa com o Correio Braziliense, Cássio — que atualmente trabalha como consultor em relações institucionais e inteligência política, propõe reformas — condena radicalismos e pede que as gerações mais jovens acreditem que construir um Brasil justo e equilibrado é possível.

O senhor foi eleito com apenas 23 anos para a Câmara dos Deputados e participou dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. Como foi, para um jovem parlamentar, fazer parte daquele momento histórico do Brasil? Afinal, a nova Carta coroou a redemocratização.

Tinha, de fato, 23 anos. Ainda cursava a faculdade de direito, em Campina Grande (PB), e tive uma oportunidade extraordinária de participar de um momento de transformação histórica do Brasil. A pouca idade facilitou muito meu conjunto de relacionamentos no plenário da Constituinte. Transferi o curso da Paraíba para a UnB, aqui em Brasília, mas ficou impossível conciliar as aulas, que eram pela manhã, com as atividades das comissões temáticas da Constituinte. Optei, então, por fazer o “curso prático”, vivendo a experiência constituinte — e tranquei a matrícula na universidade. Foi uma vivência intensa, rica, diversa — que levo comigo para a vida toda.

Que memória o senhor guarda do ambiente político na Constituinte? Havia um espírito de reconstrução da normalidade institucional do país? Ou os temores de confrontar os escombros da ditadura ainda não tinham sido superados?

A ambiência era majoritariamente de esperança, de confiança no que estava por vir. Houve uma tensão maior quando se discutiu a duração do mandato do presidente José Sarney — esse foi um ponto sensível da Constituinte. Surgiram rumores, mais especulativos do que reais, sobre a possibilidade de um novo golpe militar caso Sarney não conseguisse ampliar seu mandato para cinco anos. Saulo Ramos, que era consultor jurídico do presidente e amigo do meu pai [e depois também ministro da Justiça do governo Sarney], chegou a me chamar à casa dele, em Brasília, pedindo meu voto pelos cinco anos. Eu já havia me comprometido com os quatro. Levei o caso ao meu pai [o também ex-senador e ex-governador da Paraíba Ronaldo Cunha Lima], que riu e disse: “Isso é Saulo fazendo terrorismo para tentar conquistar o seu voto”. Mas, no geral, o clima era de otimismo, de consolidação da democracia — e tivemos êxito nesse aspecto.

O senhor acredita que a Constituição de 1988 representou, de fato, uma ruptura com o regime militar ou ela nasceu com concessões demais às estruturas autoritárias da ditadura?

Acredito que foi feita uma transição. E quando você faz um pacto de transição entre um período ditatorial e um democrático, é natural que alguns acordos sejam firmados — e devem ser respeitados. Um exemplo é a própria anistia [de 1979]: ampla, geral e irrestrita. Participei da campanha pela anistia quando ainda era estudante, no Rio de Janeiro. Era preciso virar essa página da história. O que houve foi uma transição madura e serena, com avanços importantes na Constituição e respeito aos pactos políticos que garantiram a estabilidade institucional.

Qual o senhor considera que tenha sido sua principal contribuição para o texto constitucional? Houve alguma bandeira que o senhor tenha defendido com mais ênfase naquele momento?

Tenho muito orgulho de três dispositivos constitucionais de minha autoria. O primeiro garante o pagamento de um salário mínimo integral para todos os trabalhadores rurais — até então, eles recebiam meio salário. O segundo dispositivo reduziu a idade para aposentadoria do homem do campo, de 65 para 60 anos, e da mulher, de 60 para 55 anos. Isso teve impacto na vida de milhões de brasileiros. O terceiro assegura o transporte coletivo gratuito para os idosos. Recentemente, tive a alegria de usar esse benefício no metrô de São Paulo — algo que ajudei a tornar realidade. Participei, também, de outras iniciativas, como o voto aos 16 anos. Mas esses três dispositivos foram, integralmente, de minha autoria.

Um dos marcos da Constituição de 1988 foi a consolidação dos direitos sociais e das garantias individuais. O senhor acredita que esses pilares foram bem compreendidos pela sociedade brasileira nos anos seguintes?

A Constituição contém preceitos fundamentais quase universais. O desafio é fazer com que essa justiça seja praticada no cotidiano. Vivemos em um país com profundas desigualdades. Enquanto nega creche a crianças pobres, o Estado concede auxílio-creche a promotores e juízes que não precisam. As distorções não estão no texto constitucional, mas em quem o interpreta e aplica. O Estado brasileiro deixou de ser alavanca de desenvolvimento para se tornar uma âncora que impede o país de crescer. Isso precisa mudar. O modelo atual é insustentável.

Passadas quase quatro décadas, que pontos da Constituição de 1988 o senhor considera fundamentais para a preservação da democracia brasileira?

O principal pilar é a soberania do voto. Todo poder emana do povo — isso está no artigo primeiro —, mas há falhas no processo de escolha. A reeleição, por exemplo, distorce o regime democrático, pois quem está no cargo leva uma vantagem imensa. O Brasil também vive, permanentemente, em campanha, com eleições a cada dois anos. Isso paralisa o país. É necessário rever o calendário eleitoral e o próprio modelo federativo. Temos uma estrutura de Estado unitário com custos de Estado federado. O layout do Brasil está errado.

O Brasil falhou em implementar uma verdadeira justiça de transição, especialmente no que diz respeito à responsabilização dos agentes da ditadura que cometeram crimes considerados inafiançáveis — como torturas e desaparecimento de corpos de opositores do regime?

Acredito que não. Houve um pacto político firmado à época, com a anistia ampla, geral e irrestrita. Todos foram anistiados. Isso foi acordado com a sociedade. Remexer essas feridas agora seria romper esse pacto. É um contrato social que precisa ser respeitado.

Como o senhor enxerga os movimentos recentes que relativizam ou até mesmo defendem o regime militar? Essa nostalgia autoritária seria reflexo de falhas na construção da memória democrática?

Esses movimentos existem, mas são minoritários. Surgem porque a democracia prometeu resolver injustiças e não conseguiu. Vencemos a inflação, redemocratizamos o país, mas ainda há desigualdade. O problema não está no setor privado, mas no Estado brasileiro — ineficiente, inchado, perdulário, muitas vezes corrupto. Quando a democracia não responde, surgem vozes que flertam com o autoritarismo. Eu sou radicalmente contra. A democracia continua sendo o melhor caminho.

O senhor considera os atos de 8 de janeiro de 2023 uma tentativa de golpe de Estado?

Não vejo como golpe. Foi uma ação de vândalos e irresponsáveis, que precisam ser punidos. Mas não havia qualquer estrutura para um golpe. O presidente Lula já havia nomeado os comandantes das Forças Armadas. Um golpe não ocorre sem apoio militar. Foi um ato grave, que precisa de resposta firme, mas não se pode condenar no atacado. A dosimetria das penas precisa ser respeitada. O caso da Débora [Rodrigues dos Santos, que pichou um monumento em frente ao Supremo Tribunal Federal e está em prisão domiciliar por determinação do ministro Alexandre de Moraes], por exemplo: mãe de duas crianças, presa por dois anos por escrever “perdeu, mané” com batom numa estátua, me parece um exagero.

Existe diferença entre os pedidos de anistia aos condenados pelo 8 de Janeiro e pela tentativa de golpe depois das eleições de 2022 e a anistia que permitiu o avanço do processo de redemocratização?

Há sim. A anistia aprovada na transição foi fruto de um pacto amplo. Hoje, os pedidos de anistia decorrem de exageros nas penas. O caso da Débora é simbólico. Não conheço os autos, mas segundo a imprensa ela ficou dois anos presa preventivamente. Que risco ela representava? A pena foi excessiva. Isso alimenta o movimento pela anistia.

O senhor foi um jovem constituinte. Como avalia o papel dos jovens na defesa e renovação da democracia? As novas gerações estão engajadas?

Cada geração encontra seu caminho. Não acredito em tutelas ou patrulhamentos ideológicos sobre o comportamento da juventude. Vivemos uma transição profunda entre o mundo analógico e o digital. Tenho filhos e netos e percebo que estamos diante de uma revolução. A escola como conhecemos talvez nem exista mais em 20 anos. A tecnologia transforma tudo. O que se espera é que os jovens ajudem a construir uma sociedade mais justa e menos desigual.

Como o senhor vê o papel do Congresso, atualmente, no fortalecimento ou enfraquecimento do pacto democrático firmado em 1988?

O Congresso é a mais genuína expressão da democracia. Todo deputado ou senador foi eleito. É verdade que há máculas históricas nas eleições no Brasil, mas o Parlamento continua sendo um pilar essencial. A democracia tem defeitos, mas ainda é o melhor sistema. Hoje, sou defensor do parlamentarismo. O Congresso alcançou muito poder e precisa ter responsabilidades proporcionais. Caso contrário, teremos desequilíbrio — e isso será danoso para o país.

(Fonte: Correio Braziliense / Foto: reprodução internet)

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