Pedro H. Guerra aponta que a reforma tributária ignora princípios constitucionais de justiça social
Nos distanciando momentaneamente dos devaneios e reflexões filosóficas e literárias, sempre em respeito a dualidade da alma que busca o devaneio metafísico, enquanto à mente consciente se alimenta da razão e da realidade.
Hoje vamos tratar da face jurídica e social que esta coluna e este colunista também se propõem, o tema ora tratado logo estará presente em cada ato da nossa vida real: a temida “reforma tributária”, já aprovada e promulgada, esperando na fila legislativa brasileira para vigorar e reger as nossas trocas simbólicas e fiduciárias.
Costumeiramente se afirma que ser cobrado de um tributo é uma das certezas da vida humana, assim como a morte. Essa afirmação popular pode ser, de fato, verdadeira para certa camada da população, qual seja, a classe média e as camadas mais pobres e hiper vulneráveis do povo, que são ambas esmagadas e sufocadas pela tributação do consumo e desproporcional da renda, que incide assimétrica e majoritariamente sobre a classe trabalhadora.
Enquanto o leão arrecadador caça os mais magros e escassos as grandes rendas oriundas de dividendos e lucros empresariais, assim como as grandes fortunas e patrimônios herdados e improdutivos são beneficiados pelas isenções e inações legislativas, tão distantes da noção de justiça social, que parecem cegar e anular o olfato do tal leão arrecadador.
No que pese as insatisfações sociais e jurídicas, culminarem em reformas, dentro de um Estado de Direito, a reforma tributária, em vias de vigorar no Brasil, inicialmente com a PEC 45/2019 e, mais recentemente, aprovada e promulgada como PEC 132/2023, não parece refletir a realidade das mudanças que, de fato, são necessárias.
Analisando a reforma nesse cenário, os autores Portela e Guimarães, em artigo de 2020, se debruçaram sobre o texto da reforma à luz dos ensinamentos de Thomas Piketty e seu livro “O Capital no século XXI”, introduzindo importantes conceitos norteadores para a equidade e efetividade de qualquer sistema tributário.
Na análise dos autores, a reforma tributária, em seu texto, deixa de lado importantes princípios e aspectos fundamentais à finalidade da tributação conforme pacto social e constitucional. A reforma não realiza enfrentamento e mantém a estrutura das desigualdades sociais e econômicas já tão profundas no Brasil. Isso significa um estancamento da justiça social, beneficiando e promovendo o desenvolvimento desigual.
Segundo Portela e Guimarães (2020), alguns conceitos poderiam ser ferramentas para a diminuição das desigualdades, invertendo o que Piketty (2015) chama de regressividade tributária, isto é, o fato de os mais pobres sofrerem desproporcionalmente mais com a incidência dos tributos, causada pela concentração de tributos indiretos sobre o consumo. Segundo a análise dos autores, quase 50% da arrecadação advém do consumo.
O Estado brasileiro, conforme entendem os autores, deveria implementar a chamada “tributação equitativa”, onde o sistema tributário é na verdade instrumento de redução da desigualdade, justiça social e desenvolvimento.
Para esse fim, a reforma precisaria focar na chamada “Progressividade tributária”, na qual a maior parte dos impostos incide sobre patrimônio e renda de maneira progressiva, em conjunto tributos justos e eficazes sobre Herança, evitando o acúmulo improdutivo do capital.
Entretanto, a reforma tributária em vias de vigorar no país se limitou a simplificar e unificar tributos, a exemplo do ICMS e ISS, unificados na forma do IBS – Imposto sobre Bens e Serviços – e ainda tributos federais sobre consumo (IPI, PIS e Cofins), sob a forma do IVA, mantendo a mesma estrutura de desigualdade sob novos nomes.
Não obstante à ausência de efetivas ações sobre as desigualdades, a reforma não enfrenta o desafio da digitalização da economia. Como preconizam os autores da Lannes e Gióia (2022), em seu artigo sobre a economia digital, o sistema tributário brasileiro não oferece ferramenta eficaz para o Estado poder tributar e enfrentar satisfatoriamente a crescente e pujante economia digital que segue baseada em trocas sem intermediação, de bens incorpóreos e sem territorialidade definida, ou seja, sem qualquer das bases que o sistema atual de tributação se fundamenta.
Nesse sentido, o fato é que a reforma que entrará em vigor, não será ferramenta apta de combate às desigualdades ou de promoção à justiça social, além de ser potencial causa para disputa fiscal entre os entes federativos, pela forma na qual os tributos de diferentes competências foram unificados.
De modo que a busca pela redução da profunda desigualdade social e econômica continuará dependendo de um sistema tributário equitativo, não contemplado pela reforma e que deveria fornecer ferramentas centradas na arrecadação em cima das grandes rendas e patrimônios, possibilitando real transferência de riquezas e aproximação de um Estado de bem-estar social ainda muito distante.
13 de setembro de 2025
Pedro H. Guerra
Referências:
LANNES, YURI Nathan da Costa; GIOIA, Fulvia Helena de; AMORIM, Jorge Eduardo Braz de. Desafios da tributação da economia digital: BEPS e a realidade brasileira. Revista Juridica, [S.l.], v. 3, n. 70, p. 610 – 631, set. 2022. ISSN 2316-753X. Disponível em: http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/view/5990.
PIKETTY, Thomas. A Economia da Desigualdade. Trad. André Telles da edição francesa de 1997. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015, p. 85.
PORTELLA, André Alves; GUIMARÃES, Rebeca Bárbara Guimarães. Análise-crítica da proposta de reforma tributária brasileira à luz da concepção de tributação equitativa de Thomas Piketty. Revista de Direito Internacional Econômico e Tributário, v. 15, nº 1, p. 112–142, Jan-Jun/2020. Disponível em: https://portalrevistas.ucb.br/index.php/rdiet/article/view/11515.
(Imagem de capa: Freepik)