As mudanças climáticas proporcionam uma nova realidade ao mundo. Se tratando de matriz energética, a impressão que tenho há um certo tempo é que há um constante “bate-cabeça”. Estou na Europa, mais especificamente em Portugal, há cerca de 4 meses, de onde vim fazer meu pós-doutorado. Percebo ao longo desses meses uma realidade onde os automóveis elétricos se fazem cada vez mais presentes. Realidade um tanto que diferente do Brasil, que engatinha nesse setor, embora algumas iniciativas já estejam sendo tomadas. Normalmente, sabemos que as coisas acontecem assim mesmo, elas chegam primeiramente aos Estados Unidos e à Europa, para depois chegar ao sul global. No entanto, não é esta a questão central que quero comunicar ao leitor. O fato é ainda mais profundo. Quando tratamos de mudança da matriz energética, alguns fatos intrigantes nos revisitam, como este dos veículos elétricos. A Europa tem sido invadida por esta realidade, por precisar alcançar metas de redução da emissão de carbono na atmosfera, coisa que também temos visto positivamente, que se expressa, também, na coleta seletiva do lixo, que se faz de uma forma bastante diferente do Brasil. As pessoas já têm uma certa consciência no tocante à separação dos itens antes de descartá-los, contribuindo substancialmente para a reciclagem. Isso se vê nas ruas, em frente às residências, em cada estabelecimento comercial. Algo muito positivo, digamos de passagem. Contudo, retornando ao fato dos veículos elétricos, há uma questão muito intrigante, pois os governos da Europa sabem muito bem de onde vem a fonte para alimentar as baterias elétricas que circulam nesses veículos. Uma delas vem do próprio território brasileiro, onde se desmatam hectares e hectares de mata nativa para explorar os minérios essenciais para a fabricação desses utensílios. Ou seja, afora a questão do lixo, que me parece muito louvável, a estória dos automóveis elétricos na Europa. Mas, na realidade, soa somente como uma maquiagem de bondade para se alcançar metas de emissão, jogando a bomba da responsabilidade para outros países. Isso nos mostra que a mudança da matriz energética é algo muito mais complexo do que tão simplesmente substituir veículos movidos a combustíveis fósseis por veículos elétricos. 15 de maio de 2025 Saulo Roberto VitalGeógrafo, Doutor em Geociências e Professor da UFPB (Imagem de user6702303 no Freepik)
O caso de Buriticupu: por mais Zoneamentos Ecológicos-Econômicos (ZEE)
Provavelmente, muitos já estão acompanhando a situação em Buriticupu, no Maranhão. Existem muitas voçorocas que têm se espalhado por uma área significativa deste município. Este caso nos chama a atenção para o fato de que um desastre dessa magnitude acontece devido a vários fatores. O primeiro deles diz respeito ao contínuo desmatamento que ocorreu nos últimos anos. Em uma linguagem mais compreensível para o público, podemos defini-las como grandes rachaduras no solo, resultantes da erosão provocada pelas precipitações. Neste cenário, a remoção da vegetação, frequentemente, torna-se a principal origem deste tipo de problema. Em Buriticupu, prevê-se uma diminuição significativa na biomassa nos últimos anos. Além disso, outros elementos, como a natureza arenosa dos solos e a insuficiência da infraestrutura de drenagem e saneamento básico, se destacam como outros elementos que contribuem para esse desastre. No entanto, é importante destacar que o caso de Buriticupu, juntamente com outros espalhados pelo Brasil, ilustra problemas resultantes da ausência de planejamento urbano. Sim! Da falta de planejamento, uma vez que não considerar fatores naturais na expansão das cidades constitui uma falta grande e um total desconhecimento acerca do que vem a ser o mínimo dos requisitos necessários para um planejamento e ordenamento do território. Na ciência geográfica, este instrumento de orientação se desenvolve através do Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE), que, nos últimos anos, vem se demonstrando como uma ferramenta eficaz para o planejamento urbano. Esse tipo de instrumento leva em consideração as características naturais e sociais de uma localidade, e, através da cartografia, designa diferentes usos indicados para uma área, com base nos diferentes elementos da superfície terrestre. Desse modo, se todos os gestores utilizassem essa ferramenta nas suas tomadas de decisão, haveria, sem dúvida, uma infinidade menor de “Buriticupus” no Brasil e no mundo. Saulo Roberto de Oliveira Vital 27 de fevereiro de 2025 (Foto: Voçorocas no Município de Buriticupu, MA. Fonte: Poder 360)
Mudanças climáticas, a pandemia e o movimento pseudocientífico
* Por Saulo Roberto de Oliveira Vital – Geógrafo e Professor da UFPB Falar sobre mudanças climáticas no início dos anos 2000, para um determinado grupo de céticos, era algo distante da realidade, por vezes até contestável. O IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), criado em 1988, ainda não tinha grande respaldo frente ao argumento desse grupo. Todavia, no início da década passada, as projeções do IPCC começaram a se concretizar. A elevação exponencial da temperatura média global, assim como o aumento da frequência dos eventos extremos, passaram a demonstrar que as projeções de cenários climáticos apontavam para a confirmação de um panorama de mudanças climáticas. Outro fenômeno, não desvinculado do aquecimento global, a pandemia do novo coronavírus, também foi alvo do movimento negacionista, que contestou veementemente a eficiência das vacinas para o seu combate. Assim como a COVID-19, há a negação de que o desmatamento contribui para o aquecimento global. Esses e outros argumentos esdrúxulos passam a compor o imaginário fértil e esquizofrênico de um movimento pseudocientífico ressurgente. Contudo, o fim da pandemia marcou a vitória da ciência nessa trincheira de batalha frente ao obscurantismo. A partir de então, a ciência ganhou maior notoriedade e credibilidade, pois, mesmo frente à resistência de governos negacionistas (basta se reportar aos casos de Madri na Espanha, Brasil e Estados Unidos), as vacinas puseram fim a uma pandemia que dizimou mais de 700.000 brasileiros e quase 7 milhões de pessoas no mundo. Conforme apresentado, não há desvinculação dos movimentos que negam a pandemia e o aquecimento global, pois ambos fazem parte de um mesmo tronco. Esses algozes estão vinculados a ideais de liberalismo econômico, transmutados por um discurso “moral” e religioso, a fim de conquistar as massas menos instruídas. As vítimas, oprimidas, até então favoráveis às políticas de igualdade social, tão logo confrontadas frente a questões morais, cedem ao discurso opressor. É uma forma que a extrema-direita e o movimento pseudocientífico encontraram para conquistar as massas, baseados na promessa de um inferno disfarçado de paraíso. Diante desse cenário, qual a relação entre liberalismo econômico e negacionismo? Basta se reportar ao discurso que ameniza os efeitos do desmatamento no aquecimento global. Nesse ínterim, basta trazer o exemplo da Amazônia Brasileira, a única porção da superfície capaz de originar uma massa de ar continental de característica úmida. A partir da floresta amazônica emergem os chamados “rios voadores”, que transportam grande umidade para o sul e sudeste do Brasil. Para atestar os impactos do desmatamento sobre essa dinâmica, basta observar a recorrência dos últimos episódios de secas nessas regiões, atestada pelo baixo volume dos reservatórios. Num país onde a matriz energética depende massivamente das hidrelétricas, essa crise também pode gerar prejuízos econômicos expressivos. De fato, é difícil correlacionar fenômenos de ordem local ou regional àqueles de abrangência global. Porém, decerto, há que se pensar os fenômenos físicos do planeta a partir de uma visão holística, ou seja, de maneira integrada. Embora saibamos que os oceanos são os grandes produtores de oxigênio, não se anula o efeito benéfico da floresta amazônica para o Brasil e para o mundo. No fim de tudo, percebe-se que o discurso liberal se vale do negacionismo para seu próprio benefício, pois a floresta de pé não favorece a seus ideais especulativos.
A natureza está cobrando sua conta
O IPCC (Painel Intergovernamental Sobre as Mudanças Climáticas) tem demonstrado em seus últimos relatórios que as mudanças climáticas são uma realidade. Há cerca de uma década, muitos céticos se levantavam tentando contrapor esta tese. Hoje, o aumento da intensidade e frequência dos eventos extremos demonstram que esta realidade está cada vez mais próxima de nós. Desastres como o de Petrópolis (ano), Recife (ano), Rio Grande do Sul (em duas ocasiões), a seca na região amazônica, as queimadas no Pantanal, além de outros fenômenos no Brasil e no mundo, demonstram que essa hipótese é cada vez mais inquestionável. Diante desse quadro, o que nos resta? Quando abordamos a realidade do planejamento urbano e das mudanças climáticas, passamos a lidar com uma questão muito complexa e delicada, tanto do ponto de vista da gestão como do ponto de vista científico. Inicialmente, podemos dizer que ela é difícil do ponto de vista da gestão, pois muitos governantes ainda não estão prontos para lidar com essa questão. A visão retrógrada e especulativa, muito atrapalha as iniciativas que visam equilibrar as ações de “desenvolvimento” e “progresso”, e de desenvolvimento sustentável. Tratar de desenvolvimento sustentável em meio a esse contexto também se torna um desafio, uma vez que, na imensa maioria dos casos, ainda não se consegue pôr em prática esse conceito até então “erudito”. Em tempos de emergência climática e ambiental, o progresso ainda tem se demonstrando completamente oposto do desenvolvimento sustentável. O modelo de cidades que ainda se desenvolvem na maior parte dos países do mundo, e diga-se, numa maioria esmagadora, ainda é incompatível com a resiliência a adaptabilidade que se espera dos grandes centros urbanos em tempos de mudanças climáticas. Nesse ínterim, os desastres, que não são naturais, se tornam cada vez mais frequentes e onerosos. Neste bojo, cabe uma reflexão: oneroso para quem? Para os poderosos ou para a população? Aqui, portanto, se revela uma cruel face da desigualdade social e das disparidades socioespaciais e ambientais. As cidades, sobretudo nos países ditos subdesenvolvidos, tornam-se cada vez mais caóticas e díspares em seus privilégios e oportunidades. Diante desse quadro, cabe uma reflexão: é possível ainda soluções para este quadro? Há, mas requer uma ação urgente e uma rápida virada de jogo. Se parássemos com as ações de degradação hoje, ainda levariam muitas décadas, ou talvez até séculos, para que muitos sistemas se reestabelecessem. E o que seria o reestabelecimento dos sistemas terrestres? Seria, se não o seu retorno ao estado de equilíbrio, um cenário onde uma dada cadeia de eventos se tornasse mais previsíveis e, portanto, fáceis de gerir. A partir do momento em que atuamos nessa cadeia de eventos, modificando sua dinâmica a partir de novos fluxos de matéria e energia, estabelecemos novos padrões e ritmos de funcionamento, que culminam em eventos catastróficos. Trocando em miúdos, é aquela velha máxima que diz: a natureza está cobrando sua conta!