É um verdadeiro lugar-comum da crítica machadiana o ressalto da investigação psicológica empreendida por Machado de Assis no decorrer de sua abundante e versátil carreira artística. Fruto de um expediente literário que busca “descer à essência dos seres, para lhes interpretar o mistério, em vez de se contentar com a forma e o colorido de suas aparências”, tal veio forma um dos aspectos mais notáveis da obra de nosso maior escritor, um aspecto, é bem de ver, posto a serviço da programação estilística de Machado que procura desvendar e esculpir a realidade humana desde o cubículo intrincado da mente até o asfalto concreto da vida onde a carpintaria romanesca de sua pena encontra materialidade e organismos pulsantes à espera de fabulações. (Josué Montello. Santos de Casa. Estudos de Literatura. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1966, p. 44)
Com efeito, o dito “realismo interior” de Machado penetra “com paciência de ourives no mundo psicológico” de jeito a atingir “camadas inconscientes”, “zonas obscuras” ou “pouco visitadas” da psique humana. Tudo isso mediante uma estética vocabular dotada de uma beleza epidérmica patente, uma estética hábil que retrata, qual pinceladas precisas numa tela, paixões incontidas e demais inquietações da alma que arrastam as personagens a um sem-fim de situações ficcionais nas quais estas mesmas personagens entram a exteriorizar os impulsos psíquicos aí gritantes e propensos a comandar o mundo-da-vida em meio a intersubjetividade das relações. (Massaud Moisés. Machado de Assis: Ficção e Utopia. São Paulo: Cultrix, 2001, p. 32)
Não é à toa que, subido o pano da ação machadiana, o que menos importa é a sequência dos episódios objetivamente considerada que conduz a trama e anima a movimentação do palco (a “fabulação organiza-se com o mínimo de acontecimentos e com o máximo de análise”), que o interesse central repousa na programação psicológica das personagens, vale dizer, os motores mentais que desencadeiam os sucessos e as reações psíquicas destas entidades ficcionais despertadas pela factualidade posta com economia pelo narrador-observador. (Massaud Moisés. Machado de Assis: Ficção e Utopia. São Paulo: Cultrix, 2001, p. 47)
Refletindo a perícia machadiana o realismo literário de seu tempo, ao menos no que tange à fase madura de sua produção, não se furtou o romancista de Dom Casmurro a oferecer um bom alimento ao consumo de seus contemporâneos (e de todos nós vida afora) através de narrativas que punham este público apetente como que diante um avatar literário que então transbordava (e ainda hoje transborda) os dramas e cotidianos de uma nação recém-alçada à condição de independência, uma nação em cujas intrigas burgueses então em escada de gradativa ascensão e senhores de terras detinham a comandância do cetro social e inspiravam a produção literária em voga.
E nessa composição, diz a fortuna crítica a grandes vozes, o repertório da fauna humana é descrito em tom marcado por contundente crítica moral e junto com a confeição de enredos em cujos cenários figuram propósitos pecuniários vis, a livre tendência ao narcisismo e à formulação de jogos nada altruísticos. Enfim, propósitos egoísticos que, pode-se dizer, estão sempre à espreita e a ponto de romperem o traiçoeiro véu da aparência que ilude e disfarça a face sombria da vida.
Coisa de ser vista no longe do olho nu, tal desenvoltura machadiana é alvo de especificações analíticas que merecem aqui um acento tônico. Alfredo Bosi, por exemplo,é preciso na adução de que Machado primeiramente “morde” o “barro comum da humanidade” na feitura de seus projetos ficcionais, morde no sentido de desnudá-la no flagrante de seus atos mais vis e reveladores de más obras; após, mediante termos civilizados, termos de um autêntico diplomata, sem berraria ou truculência a nos embrulhar o estômago, o bruxo fluminense subtilmente “assopra”,num estilo “crítico” e dotado de “tom concessivo”, quefinalmente remete o leitor já então compensado à constatação de que o barro “é afinal comum a todos”. (Alfredo Bosi. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. 11)
Também Antonio Candido reconhece o “escritor poderoso e atormentado” ou o “desolado cronista do absurdo” que não faz praça de si mesmo nem de suas pregações ao som de recursos literários que lhe revigoram as cordas vocais, ao invés, escreve o crítico carioca, o que é saliente em seu estilo é o propósito de “descobrir o mundo da alma, rir da sociedade, expor algumas das componentes mais esquisitas da personalidade” das gentes. Tudo isso disfarçada e sobriamente, sob a “cutícula do respeito humano e das boas maneiras”, que o objetivo é “desmascarar” sem a bisbilhotice de quem faz alarde mediante baterias retumbantes. (Antonio Candido. Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 18)
A concordarmos com os autores citados, indagamos: não é este o ficcionista que nos põe diante do olhar um esposo supostamente traído à bica de promover o assassínio do próprio filho por supô-lo fruto do adultério de sua ingrata consorte, ao tempo em que é dado a suspender a narração e convidar a leitora a pular o capítulo amoral para assim prevenir espasmos de perplexidade no centro de sua cândida alma?; não é o mesmo que dá aparição a uma turba de comensais inescrupulosos diante da ingenuidade de uma triste personagem em franco estágio de decomposição dos nervos, o próprio que costuma antes advertir o espírito sensível de seus leitores de que não concordarão com os males causados ao herói então em transe? De fato, a arte de Machado é extremamente cuidada: ora previne o leitor atento a seus enredos sobre impactos prestes a acontecerem, não sem uma ponta de zombaria no método empregado, ora o conduz de mistura com o escândalo subtilmente traçado, fazendo-o, bem observa o mestre baiano Jorge Amado, “mais próximo do ceticismo do que da confiança no homem, mais do pessimismo em relação à vida que do otimismo voltado para o futuro”, em suma, fazendo-o sempre de forma muito bem polida, de modo que “a voz não se altera em gritos”. (Jorge Amado, povo e terra: 40 anos de literatura. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1972, p. 10)
É mesmo difícil enjeitar que a tinta da melancolia de Brás Cubas impregna o painel que, oriundo da paleta do Bruxo, ainda no raiar de nossos dias, ilumina a compreensão que mantemos em face da realidade tempestuosa do mundo, sendo pertinente anotarmos, a título de cobrirmos de razão as pegadas de Machado, a ótica igualmente pessimista de Edgar Allan Poe, segundo a qual “o mais sensato olho da Razão” enxerga diante de momentos de nossa “triste Humanidade” a “aparência de um Inferno”, um inferno, é o nosso pensar, que não se desprende do quadro da vida pelo interesse maior que nutrimos ante o fruto proibido da árvore do saber, inexistindo nesse estado de coisas o fluxo persuasivo de uma imaginária serpente que, nos bastidores, estaria a nos insuflar o instinto rumo a um inóspito Vale de Lágrimas. (Edgar Allan Poe. O escaravelho de ouro e outras histórias. Tradução de Marta Fagundes. São Paulo: Pandorga, 2018, p. 86)
O que fica dito lança-nos em rosto a condição de plateia que assiste ao desfile das próprias misérias e aguarda, pesarosa e resignada, consequente punição exemplar. No entanto, para adoçarmos som e imagem e esclarecermos gregos e troianos, seja-nos permitido recordar que nem só de castigo vive a dinâmica celestial, que o perdão é o outro lado da moeda que encarece a estereotipia cristã no fundo de nossa compreensão sobre as coisas do Altíssimo.
Verdadeiramente, colada à expulsão dos primogênitos do Éden no início de tudo, seguiu-se a mais completa coletânea de misericórdia sobre a vastidão do pecado que a criatividade humana é capaz de acordar, muito embora inefetiva quanto ao propósito de assentamento de uma vida mais digna, tal coletânea ao menos nos garante que sempre haverá uma condescendência divina de sobreaviso em cada desvão de nossas iniquidades.
Tornando ao que deixamos em cima da mesa, já agora podemos avançar que o ceticismo machadiano e a pungente crítica moral que lhe vêm à frente abeberam-se muito pronunciadamente no que Barreto Filho batiza de cláusula da “restituição ou compensação em série”, segundo cuja dicção o encadeamento das pessoas no mundo-da-vida, ou melhor, o fato de todas estas estarem ligadas umas às outras e postas em degraus de consideração social diversos (evidentemente pelo cabedal ou nomeada envolvidos), em razão desta escadaria social, frisamos, os que estão em patamar superior extraem proveito em face daqueles que “estão colocados no elo imediatamente inferior”, podendo tal molde ser bem expresso na síntese do autor que arremata: “Dominados e oprimidos pelos que estão em cima, os homens se compensam oprimindo e dominando os que estão em situação inferior”. (A Literatura no Brasil. Volume I. Direção de Afrânio Coutinho. São Paulo: Global, 1999, p. 160)
A bem dizer, semelhante cláusula constitui pura e simplesmente uma das musas do gênio machadiano, que a pontaria que lhe é característica, afiada a mais não poder, não desfalece enfastiada em planície cor-de-rosa e despida de espectros vivos, antes pelo contrário, ganha fôlego em cemitério sombrio onde cada luto aí existente representa uma alma perdida e a constatação de que o pecado terreno forma o denominador comum dos rastos deixados pelas individualidades ao longo do percurso da vida.
Para verticalizarmos a matéria, é bom de ver que o próprio Machado fornece-nos pistas no seguimento das quais identificamos algo do ceticismo que lhe marca muito vincadamente o perfil literário. Ilustrativamente, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, a dita “geologia moral” por ele esboçada revela que há “camadas de caráter” revestidas duma espécie de “dignidade fundamental” e resistentes ao “comércio dos homens”, aí residindo uma aparente perspectiva do narrador que compreende, como se diante de um náufrago inserto em ilha perdida estivesse, uma “camada de rocha” alheia à erosão pululante das intempéries da vida. De parceria com isto, acrescenta que camadas outras, postas à superfície dos acontecimentos, e diante do “enxurro perpétuo” do mundo-da-vida, são varridas tal qual poeira em alto mar que não resiste ao menor sopro de vento que contra si descarregue contrariedade. (Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001, p. 188)
No entanto, voltando sobre os próprios passos, ainda sob a voz de Brás Cubas, Machado cuida de discutir as causas motrizes dessas afirmadas camadas de caráter e de suas eventuais benfeitorias prestadas em território alheio. Nessa discussão, atira que tais benfeitorias correspondem a aberturas de janelas com vistas a arejar-se o espírito contrito diante do mal imediatamente levado a efeito pela criatura então em dinâmica de disseminação de iniquidades, como se tudo estivesse a configurar um jogo de interesses a título de compensar a consciência então sob a investida de lufadas de ar que, finalmente, confortam-lhe o estado e permitem a subsistência sem traumas.
É tempo de concluirmos e vamos fazê-lo prontamente. Embora inesgotados os vetores do pessimismo de Machado, evidentemente pela economia que imaginamos dedicar ao presente estudo, autorizados estamos a avançar rumo à consideração derradeira de que a ótica cética aqui presente é a do veículo que transporta simultaneamente um “tormento” e uma “delícia”, ou seja, um “tormento de não poder crer nas criaturas, de lhes perceber todos os cálculos, todas as espertezas”, e, ademais, um gosto, uma espécie de prazer artístico “de ver como nascem e morrem as paixões, de ser o espectador que aprecia a um tempo a plateia e os bastidores”. Enfim, eis o veículo do grande prosador e os seus respectivos subprodutos, cujo combustível traduz em si o “fruto da simpatia humana aliada ao pendor crítico”, afinal de contas, no íntimo de um mestre que dedicou o curso da vida ao artesanato de seu projeto literário, assim enaltecendo a nossa república das letras, neste íntimo, estávamos a dizer, havia um “coração que se compadecia” e um “espírito que buscava explicações”. (Lúcia Miguel Pereira. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, pp. 192-193)