Auditoria aponta que municípios definem regras sob medida para OSSs específicas
Sete anos depois da operação Calvário — deflagrada em dezembro de 2018 para investigar desvios na saúde pública da Paraíba — a imprensa nacional, através da Folha, revelou que foi um delator da dita operação quem revelou a Auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) uma das principais fragilidades na contratação de organizações sociais de saúde (OSSs): o processo de qualificação das entidades. Segundo o delator, esse procedimento é conduzido pelos próprios municípios e pode incluir requisitos específicos que apenas determinada OSS atende, favorecendo contratos direcionados.
A constatação reforça o alerta feito pela Controladoria-Geral da União (CGU) em relatório nacional divulgado no início de 2024. O documento aponta que a má seleção de parceiros privados e a ausência de controle preventivo têm gerado desvios de recursos públicos e comprometido a efetividade do modelo de gestão terceirizada.
Em São Paulo, estado com maior número de OSSs no país, os repasses municipais para essas entidades cresceram 454,4% entre 2019 e 2024, saltando de R$ 1,6 bilhão para R$ 8,6 bilhões, segundo dados do Tribunal de Contas do Estado (TCE-SP). No mesmo período, o número de habitantes atendidos por contratos de gestão na saúde subiu de 4,5 milhões para 16,9 milhões.
Apesar do crescimento, a fiscalização permanece frágil. A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) reconhece que a ausência de padronização normativa, indicadores claros e bases de dados consolidadas afeta diretamente a qualidade das políticas públicas. “É fundamental que a União e os órgãos de controle apoiem com padronização, capacitação e instrumentos de transparência”, afirmou a entidade em nota.
A última grande operação envolvendo OSSs, em agosto de 2025, investiga contratos de até R$ 1,6 bilhão com o Hospital Mahatma Gandhi. A apuração aponta a existência de um “departamento extraoficial para pagamento de propinas, desvios de recursos e expansão ilícita de atividades”. A diretoria da OSS foi afastada, e o caso segue sob sigilo.
Para o advogado Sylvio Alarcon, doutor em direito constitucional pela USP, o problema é estrutural. “Vemos movimentos importantes dos tribunais de contas e do Ministério Público, mas isso acontece depois que o estrago já foi feito”, afirmou. Ele defende alterações profundas na legislação das OSSs e critica propostas que apenas reiteram obrigações já previstas, como o cumprimento da Lei de Acesso à Informação (LAI).
O Congresso discute mudanças na lei 9.637/1998, que regula as OSSs. Um projeto de lei de autoria do senador José Serra (PSDB-SP), aprovado no Senado em 2018, prevê exigência de certificados de regularidade e proíbe contratos com entidades cujas contas tenham sido rejeitadas nos últimos cinco anos. O texto, porém, segue parado na Câmara.
Enquanto isso, estados e municípios tentam implementar boas práticas. Santa Catarina exige desde 2006 que repasses a OSSs sejam feitos por bancos oficiais — medida adotada nacionalmente apenas em 2023. Em Fortaleza, o Hospital Waldemar Alcântara passa por auditorias semestrais internas. Já São Paulo lançou em junho um sistema eletrônico que obriga OSSs a fornecerem dados em tempo real sobre contratações e metas, permitindo cruzamento de informações e combate a fraudes.
A discussão sobre a qualificação das OSSs e a transparência nos contratos continua sendo um dos pontos mais sensíveis na gestão da saúde pública brasileira. A revelação feita pelo delator da Calvário reacende o debate sobre a necessidade de reformas estruturais e maior controle sobre os recursos públicos. (Texto: redação Click100 / Imagem de Capa: reprodução arquivo arte Ascom MPPB)