Capitalismo redefine valores e ameaça sentido da vida cotidiana

Há um desconforto difuso que atravessa a vida contemporânea e que raramente sabemos nomear. Uma sensação de esvaziamento, como se tudo estivesse disponível, acessível, mensurável e, ainda assim, nada fosse plenamente vivido. Trabalhamos mais, consumimos mais, escolhemos mais; porém, paradoxalmente, sentimos menos. O mundo parece cada vez mais funcional e cada vez menos significativo.

Sim, eu imagino que você leitora e você leitor ou sentem ou já sentiram isso. Esse sentimento é fruto da quantificação da nossa existência e de tudo que a cerca e é uma consequência do desenvolvimento atual do nosso sistema de produção, que tanto determina nossa percepção da vida, o Capitalismo.

Esse fenômeno não é novo, mas talvez nunca tenha sido tão sofisticado. Apesar de tão criticado pela sua proposta política, peço que você escute o que o velho Karl Marx estudou sobre o conceito de valor das coisas e mercadorias e como afetam a realidade. 

Ainda no século XIX, o velho Marx já apontava algo que hoje se revela com nitidez inquietante: a transformação das coisas em mercadorias não altera apenas a economia, mas a própria forma como nos relacionamos com o mundo. Quando tudo passa a ter um valor de troca, algo fundamental se perde o “valor de uso”, isto é, o sentido concreto e humano daquilo que existe, a utilidade corpórea das coisas.

No capítulo “A mercadoria”, do célebre O Capital, Marx descreve o fetichismo como esse curioso processo pelo qual as coisas passam a parecer dotadas de vida própria, enquanto os sujeitos se tornam secundários. Não compramos mais objetos por aquilo que eles são ou pelo que nos proporcionam na experiência cotidiana, mas pelo que representam no sistema de trocas. O valor deixa de estar na coisa e passa a residir em sua capacidade de circular, de ser trocada, exibida, convertida em outra coisa.

O resultado é um mundo desencantado. Não porque as coisas desapareceram, mas porque deixaram de nos dizer algo. A casa já não é abrigo; é investimento. O trabalho já não é ofício; é performance. O tempo já não é vivido; é otimizado. Uma floresta não é mais uma floresta, é seu peso e valor em madeira, em móveis, em lotes de terra e assim por diante. Até mesmo as relações humanas sofrem esse deslocamento: vínculos passam a ser avaliados por sua utilidade emocional, social ou simbólica.

Esse processo também é interpretado com aquilo que Luc Boltanski e Ève Chiapello chamaram de “novo espírito do capitalismo”. Diferentemente do capitalismo disciplinar e rígido do passado, o capitalismo contemporâneo se apresenta com uma moral justificadora baseada em pretensa liberdade ou autonomia. Ele não se impõe apenas por regras, mas por narrativas. Aqui o nosso sistema econômico não é opcional, mas mesmo assim ele não se impõe, mas nos leva a uma adesão subjetiva.

Somos convidados a nos ver como projetos, como marcas pessoais, como empreendedores de nós mesmos. A alienação, nesse novo cenário, não se dá mais pela coerção externa, mas pela internalização dos valores do sistema. A exploração deixa de parecer exploração, porque se disfarça de escolha, de autonomia, de realização pessoal.

Nesse contexto, o desencantamento do mundo assume uma forma ainda mais sutil: não percebemos que perdemos o valor das coisas, porque passamos a medir tudo por critérios abstratos de sucesso, visibilidade e desempenho. O que não gera retorno, engajamento ou vantagem comparativa tende a ser descartado, inclusive experiências humanas fundamentais, como o ócio, o silêncio, a contemplação e o fracasso.

Há um sociólogo quase que contemporâneo chamado Pierre Bourdieu, suas idéias ajudam a compreender por que esse modelo se mantém com tanta eficiência e porque foi absolvido tão profundamente e inconscientemente por nós. Para ele a dominação simbólica opera justamente quando as estruturas de poder são naturalizadas, quando passamos a enxergar como “normais” critérios que, na verdade, são historicamente construídos. Não estranhamos mais um mundo em que tudo precisa justificar sua existência por algum tipo de rendimento.

Assim, o desencantamento não é apenas econômico; é existencial. Perdemos a capacidade de nos relacionar com as coisas pelo que elas são, e não pelo que valem no mercado. O livro precisa “agregar conhecimento”; a viagem precisa “render histórias”; o descanso precisa “recuperar produtividade”. Nada pode simplesmente existir.

Talvez o drama contemporâneo não seja a escassez, mas o excesso de equivalências. Tudo pode ser trocado por tudo, desde que tenha valor. E quando tudo é trocável, nada é insubstituível. O mundo se torna funcional, mas não habitável.

Recuperar o valor intrínseco não significa negar o mundo econômico, mas lembrar que a vida humana não se esgota nele. Significa resgatar experiências que não precisam ser convertidas em capital simbólico ou material para fazer sentido. Coisas que valem porque são vividas, não porque podem ser trocadas.

O desencantamento do mundo não ocorre quando as coisas desaparecem, mas quando deixam de nos tocar. E talvez o gesto mais subversivo hoje seja reaprender a habitar o mundo sem transformá-lo, o tempo todo, em mercadoria, uma “Revolução silenciosa e sem preço.”

João Pessoa, 19 de dezembro de 2025.

Pedro Henrique Guerra

(Imagem de capa: Freepik Vecstock)

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