Reflexão literária revela como o marketing moderno distorce o conceito de realização pessoal
Após as urgentes e necessárias opiniões sobre as movimentações legislativas brasileiras, voltamos hoje, em conveniente retorno, aos assuntos literários e reflexivos.
Na coluna publicada no dia 24 de agosto indagamos sobre a identidade e como ela pode ser definida, quando nem mesmo nós, que somos os principais usuários e portadores dessa “identidade”, conseguimos sabê-la ou defini-la.
Pois bem, hoje trato sobre a projeção do lugar ideal que é projetado nas nossas vidas. Penso que todos nós que vivemos ativamente em sociedade já passamos por alguma espécie de angústia ou ansiedade, projetando o que seria uma posição ideal na vida e percebendo que estão muito distantes desse lugar ideal.
Normalmente esse lugar ideal tem uma relação direta com o lugar das elites, isto é, a resposta padrão do lugar ideal na vida pode variar entre infinitas riquezas, conquistas, glórias, poderes ou prazeres. O fato é que a resposta vai girar em torno de algo hedonista ou de delírios de poder, mas, se alguém de fato chegasse a esse ponto ideal almejado, se sentiria realmente realizado ou apenas satisfeito nas suas aspirações hedonistas?
Para essa indagação de hoje trago para nossa mesa de discussões um conto bastante conhecido e amplamente ensinado nas escolas: “A Odisseia”. Um poema épico escrito por Homero que conta a jornada de um herói grego chamado Ulisses, que após a sua memorável vitória na guerra de Troia parte com sua tropa mar adentro, de volta para sua terra, na ilha de Ítaca, onde aguardam sua esposa, Penélope, e seu filho.
O fato é que por seguidas desventuras, Ulisses vai atracando de ilha em ilha onde enfrenta monstros e desafios que aos poucos o vão deixando cada vez mais distante de seu objetivo final, nesse percurso Ulisses sofre incontáveis derrotas e sofrimentos, perde sua tripulação e levará mais de 10 anos vagando pelos mares antes que pudesse retornar ao seu ideal.
Porém uma coisa é comum em todas as suas desventuras: a incontrolável força em continuar lutando para permanecer no seu objetivo e isso o faz sobreviver a todas as adversidades.
A parte que mais nos interessa para essa discussão acontece na última parada de Ulisses antes de finalmente chegar em casa, aportou na ilha de Ogígia, onde foi recebido pela deusa Calipso. A deusa, uma das mais belas do panteão grego, o acolheu, ofereceu abrigo, alimento, prazeres e tudo que há de melhor e que estivesse ao alcance da deusa.
A tal deusa, apesar de sua sabedoria divina se apaixonou pelo herói Ulisses, e reza o poema que a paixão foi avassaladora. Do lado de Ulisses, o herói não era hedonista e não parecia satisfeito com nada que Calipso lhe ofertava. Chorava à beira do mar, olhando para o horizonte e desejando Ítaca — sua terra imperfeita, sua casa, o lugar de onde partira e para onde, obstinadamente, queria voltar.
Calipso manteve Ulisses em sua ilha por longos 7 anos e nada mudou seu desejo de retornar para casa. Após a intervenção de outros deuses do panteão, Calipso decidiu fazer uma proposta irrecusável para Ulisses, o máximo ideal almejado por todos os mortais — como ápice da dádiva — a imortalidade. Bastaria que ele aceitasse permanecer ali, ao seu lado, e nunca mais conheceria o peso da dor, da velhice ou da morte. Ainda assim, Ulisses recusou.
A cena, milenar, é o foco da nossa reflexão de hoje. É tentador pensar que a recusa de Ulisses não foi apenas por saudade de sua terra, mas uma recusa à ideia de perfeição. O herói compreende, talvez antes de todos nós, que o “lugar ideal” não é o mais belo, nem o mais confortável, mas aquele em que a alma reconhece a si mesma, e aqui não estamos falando de alma no sentido religioso, e sim no sentido poético literário.
Ulisses compreende que viver eternamente num paraíso artificial, sem o peso da escolha, seria morrer de outra forma — uma morte sem fim, uma pausa no fluxo vital. Ele entende que a vida humana só se realiza no limite, no cansaço, na imperfeição e na passagem do tempo.
Há, nesse gesto, um questionamento que é o cerne do que refletimos hoje e desemboca em nós: o que é o “lugar ideal”? A ilha de Calipso é a encarnação de tudo o que o mercado contemporâneo tenta nos vender — o espaço do conforto, do sucesso e da plenitude ininterrupta. A indústria da motivação e o marketing do bem-estar nos oferecem diariamente versões modernas de Ogígia: ilhas prometidas em forma de apartamentos de alto padrão, rotinas de produtividade inabalável, corpos sem rugas, metas sem pausas, viagens que parecem roteiros publicitários.
Mas, ao contrário do que se promete, esses “lugares ideais” não libertam — aprisionam. Ulisses estava preso à ilha não por correntes, mas pela sedução de um paraíso fabricado. Assim também nós, muitas vezes, permanecemos presos às imagens ideais.
E vejam, aqui eu não estou dizendo que o conforto, que a boa alimentação, que a realização de desejos não seja bom ou satisfatório para qualquer pessoa, certamente na ausência de confortos mínimos existe pouca vida ideal para qualquer um.
O grande ponto é que o marketing contemporâneo transformou o conceito de realização em um endereço comum, acessível mediante padrões de consumo. A “vida ideal” tem coordenadas: está nas metrópoles globais, nos escritórios minimalistas, nas casas de arquitetura neutra, nas viagens à mesma sequência de destinos. Há um mapa pré-fabricado da felicidade — e é ele que, muitas vezes, nos faz esquecer que o lugar ideal tem a biometria individual – da alma de cada um –; não é, nem pode ser, universal.
Ulisses recusa a eternidade porque entende que viver é também partir e retornar; é se perder e se reencontrar. O homem moderno, ao contrário, tem sido persuadido de que o lugar ideal da vida é uma linha reta, um estado contínuo, um produto estável. A dor, a espera, o tédio e o fracasso foram expulsos do imaginário do sucesso, como se o humano pudesse ser editado até restar apenas o instante do prazer.
Mas o que há de mais trágico na ilha de Calipso é justamente sua imutabilidade. Nada envelhece ali. E onde nada envelhece, nada acontece. Sem mudança, não há narrativa; e sem narrativa, não há sentido. Ulisses prefere o tempo finito, porque é nele que a experiência se escreve. A imortalidade o privaria da própria história.
Da mesma forma, a busca pela vida ideal proposta pela indústria nos priva da jornada pessoal, que é, por natureza, imperfeita, contraditória e instável. Não há um lugar ideal coletivo. Cada ser o constrói com seus erros e escolhas, seus amores e naufrágios. A sabedoria de Ulisses está em compreender que o “ideal” não é um ponto fixo no mapa, mas o caminho que o leva de volta a si mesmo.
Isso nos traz para a pergunta e reflexão irremediável desta coluna de hoje: existe lugar ideal universal? Além dos confortos básicos, o ponto ideal de vida é individualizado e o melhor que podemos fazer é continuar a tentar nos enxergar através da cortina que o Estado de consumo, imposto pela sociedade, nos impõe.
João Pessoa/PB, 16 de outubro de 2026
Pedro H. Guerra
(Imagem de capa: Freepik)